sábado, 23 de outubro de 2010

Sétimo Capítulo – Para rir e para chorar

Catherine

        Mais uma noite de sexo. Quando o prazer pelo prazer se torna rotina, quem está ao seu lado se torna indiferente. Pode ter o nome que for. O corpo age por instinto, uma espécie de piloto automático, que não geme, não se alegra, nem entristece, apenas age. Lógico que há aquelas mulheres que se quer ter na cama, mesmo se for ignorado os sentimentos. Torna-se um desafio de coxas, olhos, seios, boca e bunda. A necessidade de fisgar o maior peixe. A falta do beijo de Alicia fez o lado mais cínico de Cat querer ganhar esta batalha sexual. Mas como?

        Cat levanta. Carol está na cama dormindo lindamente. A cantora veste uma camisa dos Ramones grande e velha que ela tem. Tão grande que chega a um palmo de seu umbigo, o que esconde parte de sua nudez. Ascende um cigarro e vai até a janela da sala. Olha o céu e presta atenção nas estrelas. Queria voltar para a cama, mas tem medo do sono profundo. O pesadelo da noite anterior deixou seqüelas. Ela liga o rádio com o som baixo. Está tocando alguma coisa dos Scorpions. Cat pega uma garrafa de rum e se serve. Volta para a janela e olha para um horizonte. Um horizonte que deságua em seus olhos.

        Um pensamento estranho passa pela sua cabeça. Não sabe se é efeito do sono, do álcool, do sexo, de Alicia ou Carla. Mas algo a fez pensar em se apaixonar. Gostar de alguém de verdade e não levar uma pessoa diferente para a cama a cada noite para não dormir sozinha. Queria chorar, mas esqueceu como se faz isso. As lágrimas não descem e um gosto amargo na boca pareceu estranho. É o sabor da solidão. Ascendeu outro cigarro. Só fuma quando quer pensar em coisas difíceis. Cigarro prejudica a voz.

        Carol acorda e procura a dona da casa na cama usando apenas as mãos. Nada. Abre os olhos e se levanta. Vai ao banheiro e depois na sala. A sua presença linda, nua e descabelada tira Catherine de seu estranho transe. Cat olha admirada a menina que lhe faz companhia naquela noite. É de uma beleza ímpar. Só uma mulher lhe parecia ainda mais bela, Alicia. Os cabelos, boca, olhos, pêlos, cheiro, pele, tudo de Alicia é milimetricamente perfeito.  O jeito de andar, de falar. A jovem escultora parece ter sido esculpida por todos belos deuses e deusas em uma noite de paixão e inspiração. Queria ter aquele anjo em forma de mulher por uma noite, apenas uma que fosse para guardar a lembrança e a sensação do prazer sentido por aquela figura feminina pelo resto da vida.

        Carol vai até a Cat e fala que está com saudade dela na cama e pede para a moça dormir nua e abraçada a ela. Catherine tem uma idéia melhor. Elas se beijam. A fome de desejo de Cat parece voraz, mas apenas parece. Quer se sentir viva como sempre. Quer, em atos, desaparecer os pensamentos tristes sobre o amor e a morte. Duas coisas que não tem como controlar. Dizem que “só não há solução para a morte” e na mente de Catherine a frase inclui o amor, dessa forma o dito popular acaba por se dizer “só não há solução para a morte e para o amor”, pois os dois aparecem em hora não esperada, lhe pega de surpresa e não tem como mudar. Para a morte resta o amor; para o amor só resta a morte.

        “Para que pensar nisso”, pensa Cat, “tenho uma linda mulher me beijando e toda noite tem outra, para que me importar com o resto do mundo, o resto de mim”. Cat leva Carolina para cama entre beijos e fortes carícias. Para ela não importa se o que faz é trepar, transar, fuder, fazer sexo, só sabia que não tinha nada do fazer amor, que muitas mulheres preferem fazer. O importante é o prazer.

        Após muitos beijos, dedos, gemidos, boca, língua, pele, cheiro, não-pára-não-pára etc., elas adormecem. Sexo cansa. Dois corpos femininos nus e descobertos em cima daquela cama de casal tão conhecida por outras mulheres.

Já era dia quando uma voz berra um medroso “não”. Era Catherine com um bis do mesmo pesadelo da noite passada. O suor que se confundia com o sangue imaginário. A respiração abafada, cansada. Os olhos avermelhados de lágrimas que não querem cair. O desespero estampado na face pálida e incrédula da Catherine. Olhou para seu lado e estava Carolina, que nada dizia e nada fazia, apenas assustada com aquela cena.

Cat se levanta, veste a camisa e um short. Entra no banheiro e lava o rosto. Vai à sala, ascende um cigarro e chora em silêncio. Muito tempo que não chorava, mas as lágrimas fizeram força para cair. Um choro contido, porém, ainda é um choro. Carol a observa de longe. Não sabe bem o que fazer. Aproxima-se e elas se abraçam. Os soluços leves de Cat deixam a curiosidade de Carol falar mais alto. A jovem acaba por perguntar o motivo do pranto e Cat responde:

- Só me abraça. Não diga nada, agora não.

O medo da morte pode tirar qualquer um de seu eixo.

***

Alicia

        A mão na argila fria. A cabeça que não pára de pensar nos motivos que Vanessa teria em ter ido até ali e elas terem se beijado. Se ela ama mesmo o João Pedro, por que esteve ali? Nada lhe faz sentido. Até mesmo a escultura que quer fazer. Será que vale a pena arriscar de novo? Mulheres às vezes conseguem ser tão estranhas. Não sabe se deve continuar com o projeto da escultura ou fazer qualquer outra coisa. As suas mãos vão dando forma naquela massa. Cada detalhe vai tomando a sua forma nas mãos ágeis de Alicia. Não se importava mais com o que estava fazendo. Pensava apenas no que aconteceu.

        Moldava mais do que um objeto, moldava também seus sentimentos. Sabia que não deveria se deixar envolver com a indecisão de Vanessa. Talvez ela realmente não a ame, mas a quer. Sexo e amor são coisas diferentes. E as duas sempre combinaram muito bem na cama. Mas…
       
        - Será que devo ligar para ela amanhã?

        Suas mãos vão dando forma a um ser que parece estar vivo de tão real.

        - Não. Eu não devo ligar. Ela que me procure. Onde está o meu orgulho?

        Ela utiliza de suas espátulas e outros utensílios para dar mais detalhes.

        - Mas e se ela achar que eu já esqueci dela?

        Ela pensa e repensa nesse ato que pode ser importante. E ainda lembra do beijo não dado em Catherine por causa da ligação de Vanessa. Tem certeza que se fosse outra pessoa ao telefone, o beijo teria saído mesmo ela tendo atendido o celular. A valeria a pena. Catherine parece ser boa moça e é tão bonita. Sem falar que as mãos dela são bem grandes.

        - Talvez eu deva ligar para a Catherine amanhã para me desculpar.

        O corpo e o rosto esculpidos pareciam cada vez mais vivos, com uma grande riqueza de detalhes. Ela nem notara o que estava fazendo, mas fazia. O importante era colocar ali os seus pensamentos.

        - E para a Vanessa? Eu ligo?

        Parecia tão vivo aquela massa que tinha vontade de conversar e perguntar a sua opinião sobre a sua dúvida.

        - Ela vai me achar boba, no mínimo. Vai dizer que acabou e que esta noite foi um vacilo. Apenas uma recaída normal de ex-namorada.

        Vai, escultura. Mesmo sem estar pronta, diga o que deve ser feito.

        - Já sei, vou ligar para as duas.

        Os pensamentos e as mãos ágeis não paravam. Pensava e repensava. Queria saber o que fazer. Dúvidas invadiam a sua noite. O cansaço queria invadir seus olhos, fazer desmaiar seu corpo, mas ela não queria ir dormir com aqueles pensamentos. É melhor terminar a escultura, tomar um banho quente e ir para a cama.

        - É… Eu vou ligar para as duas. Com a Catherine peço desculpas e marco alguma coisa e com a Vanessa tento descobrir o que ela está sentindo e pensando sobre nós.

        Ela acaba uma das esculturas mais rápidas que fez. Olhou e viu o que era. Era ela própria.

        Ela vai ao banheiro, lava as mãos e apenas tira a roupa. Ela dorme no sofá pensando em Vanessa, Catherine e, principalmente, nela.


***

Bruna

        Ela vai para o banho e depois para a cama. Mas não dorme. Apenas chora. Chora pela raiva de ontem e a também de hoje. Ligia passou de todos os limites. Trai a amizade, na manhã seguinte quase a estupra e na noite espalha aos sete ventos que elas são lésbicas e ainda a faz ficar com vergonha, cantando uma música para ela para o prédio inteiro ouvir. Como ela iria enfrentar o dia seguinte? Como uma pessoa apaixonadamente louca pode incomodar a sua vida. E pior que ela não conseguia odiar de fato a Lígia. E a Cássia? Está sentindo tanto nojo dela, que a sua presença já está se tornando indiferente.

Sabia que nenhuma das duas podem estar falando a verdade. Não há verdades na traição, apenas desculpas. E a sua raiva aumenta pelo fato das duas jogarem a culpa uma na outra, mas se a que “estivesse dizendo a verdade” realmente foi beijada a força, ela não iria querer beijar se não tivesse vontade.

É cruel ser enganada. É ainda mais cruel esse jogo idiota que as duas estão fazendo. Uma jogando a culpa na outra. Dizendo que existe uma culpada. A melhor amiga e a namorada, alias, ex - melhor amiga e ex-namorada. Ainda bem que conhecera pessoas novas. Sempre é bom conhecer gente divertida. Acaba esquecendo por algum momento a vida complicada que as outras levam a ter.

A música é linda. Sempre gostou de Carinhoso, mas a Lígia usar disso para fazer uma declaração de um falso amor em público? Daí já é demais para a cabeça de Bruna. Queria que algo fizesse aquilo parar.

Denis entra no quarto de Bruna. Ele chega próximo dela e eles se abraçam. Ela diz entre o pranto o que está sentindo. Toda a raiva e tristeza que invadem sua alma. Tenta falar, mas apenas se engasga.

- Mana, eu vi. Foi horrível o que ela fez com você.

-… O que eu devo fazer, Denis?

- Não sei. E eu não queria ser portador de más noticias, mas tenho que lhe falar uma coisa ruim.

- O que poderia ser ainda pior nesse dia?

- Os pais escutaram tudo. Eles foram falar com os pais de Ligia e depois querem conversar com você. Estão com raiva.

- Viu… Essa garota é um tormento em minha vida. Por que ela foi fazer isso comigo? Por quê? Sempre fui legal com ela. Éramos amigas.

- Quer que eu jogue as flores fora, para não ficar pior?

- Você faz isso para mim?

- Faço sim. Eu vou tentar te ajudar com os nossos pais também. E já a Ligia, essa garota tem que ser internada.

- Cara, eu amo você. Sabia? Você é a pessoa que eu mais posso confiar no mundo.

- Obrigado. Mas somos irmãos, temos que ser cúmplices. Eu te ajudo e você me ajuda. É assim que deve ser para sempre.

- Lógico. Por que todas as pessoas do mundo não são como você?

- Estamos em um mundo individualista e egoísta. Todos só se importam com seus próprios umbigos. Por isso temos que estar unidos, para nos defender e não deixar que nada aconteça.

- Com certeza. Você é muito inteligente, sabia?

- Somos iguais. Vou lá jogar as flores na lixeira lá fora.

- Ok.

Denis vai lá, pega as flores em cima da mesa, abre a porta corre e joga na lixeira. Cássia vê a cena e abre um sorriso. E fala com o rapaz.

- Por que você está jogando as flores fora?

- A Ligia ferrou com a vida de minha irmã. Nada dela aqui é bem vindo. E nem você. Eu não sei o que aconteceu, mas tenho a certeza que você e minha irmã não estão mais juntas, se não a Ligia não teria feito aquilo com ela e se fizesse você estaria lá com a Bruna a consolando. Ela está desesperada. Chorando o tempo todo.

- Eu queria muito estar com a sua irmã. Ajudá-la. A culpa toda foi de Ligia. Ela fez a Bruna terminar comigo.

- Não interessa. Sei que agora ela está sofrendo e meus pais devem estar com raiva dela.

- Por quê? Eles sempre foram amigos dela. A trataram bem. Carinhosos.

- Eles não sabiam que a Bruna fica com meninas. Eles descobriram com esta palhaçada de Ligia. Eles foram à casa dela e depois vão subir e brigar com ela.

- A Ligia vai ver comigo. Eu estou por aqui com ela.

- Me deixa entrar. Preciso ajudar minha irmã.

- Tudo bem. Vou torcer que não dê em nada a história com seus pais. Que eles tenham aceitado.

- É que você não viu a cara deles quando ouviram tudo. Queriam matar a Ligia e a Bruna.

- Vai que agora, depois de falar com os pais de Ligia, eles estão mais calmos.

- Estou torcendo para isso. Minha irmã não merece nada de mal.

- Com certeza. Uma das melhores pessoas que eu conheci. Um grande caráter e coração. Eu a amo.

- Se amasse não teria deixado isso acontecer, nem teria a magoado.

- Eu não sabia dessa palhaçada da Ligia. Fiquei quase o dia inteiro em casa. Fui ao play de noite para respirar ar puro e vi o que vi. E eu não queria ter magoado a sua irmã. A culpa foi da Ligia.

- Está bom. Eu vou entrar.

Pouco depois que Denis entra, seus pais abrem a porta. O menino corre para o quarto da irmã e a abraça. Sabia que os próximos momentos seriam ainda mais tensos. Bruna ainda está dentro de suas lágrimas intermináveis de vergonha, raiva e tristeza.

        Uma voz grave da porta do quarto de Bruna diz para Denis sair, pois era necessário conversar com a filha mais velha. Denis não quer sair. A Bruna faz sinal com a cabeça dizendo que o irmão poderia ir sem problema. Ela seca as lágrimas do rosto com as costas da mão direita. Ela fica parada olhando para o chão. Os pais olham para ela friamente.

Mãe:         - Não vai nos dizer nada?

Bruna:       - Não tenho nada para dizer.

Mãe:         - Tem certeza.

Bruna:       - Tenho.

Pai:           - Ouvimos o que a Ligia disse. Ela fez uma declaração muito bonita.

Bruna:       - Ela é louca.

Mãe:         - Fomos conversar com os pais dela. Eles já sabiam.

Bruna:       - De que?

Pai:           - Que ela é homossexual.

Bruna:       - Pois é.

Mãe:         - Ela te expôs muito.

Bruna:       - Eu sei.

Pai:           - E as rosas?

Bruna:       - Pedi para o Denis jogar fora.

Mãe:         - Diz aqui para mim. Você é lésbica, ou isso é coisa só da Ligia?

Bruna:       - Eu… eu gosto de ficar com meninas.

Pai:           - Desde quando?

Bruna:       - Desde os catorze anos.

Pai:           - Por que a Lígia te pediu perdão?

Bruna:       - Ela ficou com a minha namorada.

Mãe:         - Quem é a sua namorada?

Bruna:       - Bem, minha ex-namorada. É a Cássia.

Pai:           - Você está sofrendo?

Bruna:       - Muito.

Mãe:         - Eu não sei o que dizer. Eu não queria que você sofresse mais do que está sofrendo. Eu te conheço, acredito que não gostou da atitude de Ligia, mas eu e seu pai queremos o seu bem.

Pai:           - É complicada essa vida. Existe muito preconceito.

Bruna:       - Eu sei. Mas eu sou assim.

Pai:           - Eu entendo. Mas você tem certeza que é isso mesmo?

Bruna:       - Sim.

Mãe:         - Não vamos brigar com você. Fique tranqüila. Não há porque ir contra a sua natureza. E nós já estávamos suspeitando disso.

Pai:           - Vai parecer castigo, mas não é. Fique um tempo sem ir ao play. Até as pessoas esquecerem um pouco essa história. Só para te proteger.

Bruna:       - Tudo bem. Eu já ia fazer isso mesmo.

Mãe:         - E pode deixar que a Ligia e a Cássia só vão entrar nessa casa quando você quiser.

Bruna:       - Obrigada.

Mãe:         - Vamos deixar você aqui sozinha. Ou quer que eu chame seu irmão?

Bruna:       - Eu vou dormir.

        Após isso eles se abraçam e choram. Bruna dorme. Pela manhã seu café está na mesa. Ela o toma e fica no computador. Queria apenas esquecer as duas ultimas noites, mas lhe é difícil.

***

Monise

Sua mão sangrava e sua dor não era no corpo. Estava tão profunda em sua alma e mente, só lembrava que todos a consideram louca, transtornada, melancólica. Ninguém enxerga que atrás de seus atos insanos há uma realidade cruel. Não há remédios, terapias, amigos e parentes que lhe tirem aquela dor.

Seus olhos estavam secos. Sua boca também. Não se mexia, apenas olhava o teto. Queria ter forças, mas se sentia tão fraca, que a sensação que tinha era que uma brisa levaria a sua triste vida ao fim. Seus pais batiam na porta, gritavam seu nome. Mas não há respostas. Monise se sentia em outro lugar. Começava a cair a temperatura de seu corpo e ela até tremia, mas não voltava a si. Não conseguia e não queria. Ela apenas se deixava ir para uma dimensão que nem ela conhecia.

O pai da menina arromba a portado quarto e vê a filha naquele estado. Branca-pálida, com a mão coberta de sangue, nua apenas da cintura para baixo e completamente fora do ar. A sua mãe chora copiosamente. O pai veste a menina com uma calça de pijama, a pega no colo e junto da esposa vai ao carro e a levam para o hospital. Lá eles confirmam as suspeitas do uso da droga pela a filha.


Médico:     - Ela usou cocaína além que o corpo dela poderia suportar. Se vocês não a trouxessem logo aqui, a menina poderia ter morrido. Tivemos que dar pontos na mão esquerda dela, que está muito machucada e encontramos diversos ferimentos nos dois tornozelos.

Pai:           - O que a gente faz com ela? É a nossa única filha.

Médico:     - Vou encaminhar ela e vocês para o psiquiatra do hospital. A única coisa que posso dizer é que fisicamente ela vai ficar bem.

Mãe:         - Não há mais psicólogos e psiquiatras que consigam ajudá-la. Já a levamos em vários e nada. Agora só Deus para salvar a minha filha dela mesmo.

Médico:     - Logo vocês poderão vê-la.

        O médico pensava na verdade que a única solução não era Deus e sim internação. Mas o rosto de cansados dos pais, mas as lágrimas e o sofrimento estampados no rosto dos dois, o fez pensar duas vezes antes de dizer aquelas palavras que poderiam sair duras. Eram pais e queriam proteger a filha, mas não sabiam como. E para os bons pais, a vida do filho é até mais importante que a própria.

No quarto, Monise ainda estava perdida em seu mundo. Estava ainda mais sozinha e o frio não vinha só de seu corpo agora, vinha de todo o resto do quarto, hospital, mundo. O frio ártico que invadia suas veias em forma de soro. O frio do branco hospitalar que adentravam em seus olhos, que hora estavam abertos, hora fechados. Queria poder ignorar tudo aquilo, mas ouvia ao fundo vozes de choro. Alguém no seu corredor havia morrido.

De olhos fechados ela tentou chorar. Tentou lembrar de algumas pessoas. Tentou lembrar das meninas. Tentou lembrar de Fred. Tentou lembrar de Luciana. Os olhos abriram e viu seus pais. Eles não sabiam ao certo o que dizer naquele momento. Poderia agravar a situação. Mas tinham que dizer alguma coisa.

Mãe:         - Por que você faz isso?

Monise:     - Isso o que?

Pai:           - Você se corta, se machuca, se droga. Vive trancada no quarto e quando sai horas parece feliz e horas ainda pior do que saiu. O que você tem?

Mãe:         - Calma, querido.

Pai:           - Nossa filha quase se matou hoje, de novo, e você que eu tenha calma? Menina, por acaso é falta de amor? Nós te amamos tanto. A sua mãe e eu fazemos tudo para você e nada. Cocaína? É isso que você nos dá em troca? Diz o que se passa dentro de você? O que, ou quem fez isso com você?

Monise:     - Eu não queria morrer hoje. Foi sem querer.

Pai:           - Você percebeu o que você acabou de dizer? “Eu não queria morrer hoje”! Hoje? Você tenta se matar tantas vezes, que eu não sei o que fazer com você. E sem querer? Cheirou pó achando que era farinha de trigo? Acorda garota! A vida não é desse jeito. Um dia você vai acabar morrendo de verdade e matando seus pais de tristeza. É isso que você quer?

Mãe:         - Calma! Você está assustando a menina.

Pai:           - Assustado estou eu. Eu e você. E quer que eu mantenha a calma? Ela já é bem grandinha. Tem dezesseis anos e sabe muito bem que toda ação tem uma reação.

Monise:     - Pai, me perdoa. Mãe, me perdoa. É que às vezes dói tanto que eu quero deixar de sentir o meu corpo. Vocês não conseguem entender.

Mãe:         - Filha, que dor é essa? O que acontece com você?

Monise:     - É o mundo que me faz sentir isso.

Mãe:         - Explica melhor.

Monise:     - Eu quero dormir. Eu posso?

Pai:           - Tudo bem, vamos te deixar sozinha. Mas você tem que se tratar. Vou te internar.

Monise:     - Não! Por favor. Não!

Pai:           - Vamos fazer um acordo. Você tem um mês para parar com essas loucuras, se não eu te interno.

Monise:     - Vou tentar. Deixa-me sozinha, por favor.
       
        Seus pais saíram do quarto. Ela chorou até dormir. Pela manhã viu sua mãe em uma cadeira ao lado, dormindo. Chamou sua mãe. Ela se aproximou da filha que a abraçou e disse que vai fazer tudo que eles mandarem, mas que não queria ser internada.

***

Luciana

Ela dormiu o sono daqueles que fazem samba e amor até mais tarde. Dormiu ali, sem tomar um banho para tirar o suor. Dormiu para não encarar os pais e seus olhos questionadores. Dormiu logo para continuar sentindo o dia que viveu. Na noite de sentidos diversos e loucos.

Luciana, garota de fibra e coragem. Uma menina que gosta de se divertir. Seus pais não entendem seu jeito desbravador. Os amigos a taxam como peste, louca e outros adjetivos. Mas ela é apenas uma menina levada. E de tão levada acaba por ser desejada. Quantos homens já a desejaram… quantas mulheres já não a tiveram… mas ela não tem dono ou dona. Ela é dela.

A jovem dorme sorrindo. Talvez esteja sonhando com mais uma aventura. Uma travessura. Algum jogo, tanto esportivo, quanto um jogo da vida. É atleta não só nas quadras e campos. É atleta da vida. E o seu sorriso é a medalha que conquistou ao longo da pequena vida e é o mesmo que serve de prêmio para aqueles que a vê.

Seu sono é leve e envolvente, como é a sua vida. Mesmo com os problemas que Às vezes encontra em casa e na escola, ela vive de forma eternamente alegre. Sua vida é feita de plumas como o seu travesseiro.

Em seu sonho ela enxerga ao fundo uma linha. Ela corre e cada vez a linha vai se aproximando. Pessoas entram no meio da pista, mandam beijo, dão adeus e ela continua a correr. Pega uma bandeira e carrega nas costas. Grita e chega à linha. É assim que se sente, carregando a bandeira da vida para cada vitória. Este sonho é uma constante de seu cotidiano noturno, quando fecha os olhos. Ela também sonha que voa. Ela vê Gustavo e tenta alcançá-lo, mas ele vai embora e em seguida vê Monise que a abraça. Ao fundo está Julia que chega perto, dá um beijo e some no vento. Vê também os pais e eles lhe dão a mão e a ajudam a seguir por um caminho.

Luciana acorda após isso. Ainda é madrugada. Seus pais estão dormindo. Ela vai até o banheiro e toma um banho. Entra na internet vê seus e-mails e volta para a cama. Acha estranho que Gustavo, justo aquele que lhe dá confiança, ela não consegue se aproximar. Teve um medo tremendo de perdê-lo. Ele é mais que seu namorado, é seu melhor amigo e irmão. Gosta de estar com ele, de rir com ele, de conversar com ele. Gosta também de se divertir com ele. Gustavo é muito importante para sair de sua vida. Ela de fato o ama e o amor pode se apresentar de diversas formas. Eles são diferentes e talvez isso no futuro não dê certo, mas ela nem quer pensar no dia que alguém vai embora. Ela não quer ter que se despedir nunca do único homem de sua vida.

Pegou uma foto na mesa do computador de seu quarto. Lá está uma foto de dois anos atrás. Gustavo e ela abraços na praia, sorrindo. Sentiu saudade desse dia e sentiu saudade dele. É como se o ciclo estivesse terminando. Ela chorou. Não quer ficar longe dele nem deixar de namorar. Que viver, mas a vida sem ele parece ser cinza, sem graça. Uma praia em um dia de chuva. Ser imortal e não poder amar. Ela chora lágrimas lentas e tristes. O sonho mexeu demais com a sua cabeça e coração. Ela beija a foto dez vezes e deita novamente na cama. Queria dormir, mas o sonho parece que a tirou da ordem. São em mais frágeis atos que se pode ser cruel e ela estava com medo da crueldade insensata com o amado.

Lu seca suas lágrimas e fecha os olhos. Quer esquecer o estranho sonho e ao mesmo tempo entendê-lo. O que a Monise está fazendo nele? E a Julia que a beija? E seus pais, para onde que eles estão a levando? Para que pensar nisso? Sonhos são apenas sonhos, frutos da imaginação. Não há nada de realidade. A sua vida é outra.

Pensou tanto que de forma distraída acabou dormindo. Sonhos foram como flashes curtos e sem saber o que de fato se tratava. Foram cada vez mais rápidos. Até que um barulho a chama atenção. Dois carros bateram na rua. Ela olha pela janela e vê o acidente. Já era cedo, oito da manhã. Ela presta atenção no movimento lá fora. Não foi com ninguém conhecido. Os envolvidos discutem. Os gritos de quem é o culpado ou não ficaram ecoando em sua cabeça.

Por que as pessoas não assumem seus erros e pedem desculpas? É tão mais civilizado.


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Espero que tenham gostado do capítulo de hoje. Beijos e abraços

Um comentário:

margareth disse...

Já falei q não perco um capítulo???
Todo sabado/domingo venho ler, e fico na espectativa do q vai acontecer...
Nem pense em parar heim Andy!!rs