quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Quarto Capítulo – Amor?… Amor?…Onde você está que não te conheço?

Catherine 

                   
        Ficou tão parada, tão pensativa, que acreditou em um instante em seu sonho. Será que não era Priscila um sonho e a Carla a sua realidade? Será que mortos sentem dor? Uma dor na alma? É difícil de entender. Mas se ela estava morta, por que ainda sentia fome?
       
        - Será que os mortos sentem fome?

        Queria sair andando por aí. Mas pegou o telefone novamente. E desta vez discou alguns números.

        - Oi. O Junior está?

        - É ele. Quem está falando?

        - Aqui é a Catherine, Junior. Assim, é que eu quero desmarcar a aula de hoje. Rolaram umas coisas e hoje não estou bem para dar aula, mas prometo repor. Tudo bem para você?

        - Tudo bem. É bom, pois eu preciso fazer algumas coisas da escola.

        - Então… tudo bem. É… a gente se fala. Ok?

        - Ok. Abraços.

        - Outros.

        Pronto. Estaria no completo ócio o dia inteiro. Mas qual é o motivo que ela fez isso? Nem ela sabia ao certo. Sabia que aquela desculpa que deu a seu aluno era mentira. Também era verdade, mas não o suficiente. Ela queria fazer alguma coisa. Não sabia ao certo. Levantou do sofá, fez um café quente, tomou com biscoitos de nata. Voltou a sala com uma xícara na mão. Pegou o violão, arranhou Bilhetinho azul de Cazuza. Mas a voz quase não saía. Não que ela estivesse com algum problema vocal, mas era na voz da alma. Ainda não descobrira o que desejava naquele sábado de inverno.

        Pegou o telefone…e discou…


***

Alicia


        O telefone toca. E dessa vez Alicia atende. Era Al, sua irmã. Que de verdade se chama Aline, mas ninguém a chamava desta forma. Era simplesmente Al. Al como seria Alicia se não fosse um pouco mais nova. A diferença delas era de um ano de idade. Lógico que a diferença entre as duas não ficava apenas na idade. Eram como água e vinho, mas se amavam. Aliás, foi amor à primeira vista. Quando Al viu a irmã, mesmo tendo um ano de idade, não desgrudou dela. E por coincidência, ou não, ela resolveu ligar para a irmã, depois de um tempo sem ter tempo para conversarem em paz. Era no máximo um telefone perguntando se está bem, como vai sua namorada, o que vai fazer no fim de semana e precisamos nos ver. E naquele sábado Al sentia a necessidade de ver a irmã. Ela havia ligado para a loja da mãe das duas e ficou sabendo que a caçula não tinha ido trabalhar e se preocupou. Conhecia bem o jeito caxias de Alicia. E a convidou para ir a sua casa.

        - Oi amor de minha vida?

        - Al? É Você?

        - Sim. Estou morrendo de saudade.

        - Eu também.

        - Vamos matar essa saudade.

        - Quando? Eu não sei se estou disposta.
       
        - Vem hoje Lili. Estou com saudade de você. Algo que aperta meu peito. Uma saudade impiedosa. Se você não vir eu vou aí seqüestrar você.

        - Tudo bem. Depois dessa ameaça não tem como não ir. Eu preciso sair mesmo.

        - Mas não vem para o almoço não. A Vero fez uns negócios verdes. Muito nojento.

        - Você quer dizer salada?

        - Você pode dar o nome que quiser, mas pra mim isso é uma eca. Tem até ricota. Desde quando ricota é queijo? Acho que vou ligar para a pizzaria.

        - Al, come a salada. Faz bem a cabeça.

        Nesse momento as duas riram no telefone. Alicia não falava sério, mas remetia ao filme O ano em que meus pais saíram de férias.

        - Então, tá certo. Já sei. Vem para o almoço, daí eu falo que você está com vontade de comer bife, arroz e feijão, daí comemos comida de verdade. Certo?

        - É para ir ao almoço ou depois? Se não vou comer na rua.

        - Boa, vou almoçar com você.

        - Se quiser te busco de carro.

        - Já pegou o carro? Ele não estava com algum problema?

        - Peguei, mas ainda nem o usei. Peguei ontem depois do trabalho.

        - Então vem logo. Traz pizza.

        - Vou levar Filet com fritas para você.

        - Oba! Obrigada, minha princesa.

        - Beijos. Te amo.

        - Beijos e eu também amo você.

        - Tchau.

        Ela acabara de desligar o telefone. Respirou fundo. Só precisou disso para ouvir o telefone tocar novamente. Precisava atender. Podia ser sua mãe ou sua irmã. Mas não era.

***

Catherine e Alicia

        Era Catherine. Alicia até estranhou aquela voz. Era inesquecível, mas ela não percebeu quem era.

        - Alô?

        - Alô? Quem está falando?

        - Aqui é a Catherine. Eu poderia falar com a Alicia.

        - É ela. Catherine? Ah! A menina do violão de ontem à noite.

        - Sim. Sou eu. Eu pensei em ligar para você e acabei ligando de verdade.

        - É. Acontece. Mas diga, você está bem? Dormiu bem?

        - Eu tive um pesadelo e queria ver alguém.

        - Eu vou ver a minha irmã, se quiser ir comigo.

        - Vou atrapalhar.

        - Não. Ela gosta da casa cheia de pessoas

Ela deu uma pequena risada. Não era tão verdade isso, mas nem tão mentira. A casa de sua irmã vivia cheia de pessoas de todos os tipos. Carentes, loucos, normais (normais?), heteros, gays, gigolôs, futuros dominantes do mundo, gênios, desatentos dentre outros seres diferentes.

- Onde você mora? Eu passo aí para irmos juntas.

- Eu passo na sua casa. Tenho carro.

- Pode ser.

Catherine deu o endereço para a moça. Desligou e se vestiu. Seria a segunda vez que ia ver Alicia e já ia ser apresentada para a irmã. Ela não é acostumada a ter esse contato mais humano com as pessoas. Geralmente tudo acaba na cama (ou banco de trás do carro e derivados). E agora estava esperando uma menina, que provavelmente, não ia acabar gemendo em seu ouvido, pelo menos não agora. Cat desde o momento que viu a Alicia, naquele bar, ficou impressionada com a sua beleza. Queria impressioná-la. Penteou os cabelos lisos. De verdade, apenas passara as mãos neles. Escovou os dentes. Estava preparada para esperar aquela mulher em sua casa. Seus olhos castanhos olhavam atentamente pela janela para ver se ela chegava. Cat tem olhos castanhos claros e cabelos castanhos escuros e lisos. E quando ficava nervosa ou ansiosa passava a mão em sua cabeça (de verdade é na nuca).

Estava lá a espera de uma simpática desconhecida. Uma linda e simpática desconhecida. Que chegara. Saiu do carro, foi em direção ao prédio, pegou o elevador (sim, ela teve coragem) e foi até o andar de Catherine. Esta por sua vez, desde o momento que viu aquela moça sair do carro, ficou contando os minutos que seriam suficientes para ela chegar ali. E a campainha toca.

- Oi.

- Oi.

- Posso entrar?

- Pode.

- Fiquei surpresa em atender o seu telefonema.

- E eu fiquei em ligar. Pensei que deveria ligar para alguém e foram seus números que eu disquei.

- Fico feliz que tenha lembrado de mim.

- Também.

- Gostei do seu apartamento.

- É… é pequeno, mas eu acho a minha cara.

- Você tem muitos instrumentos.

- É. Eu toco a noite… dou aulas…

- Legal. Eu gosto de arte também. Eu sou artista plástica. Pinto… faço esculturas… eu gosto mais das esculturas, mas pinto às vezes para ganhar algum dinheiro extra.

- Eu dou aula para também ganhar algum dinheiro. Gosto mais de tocar. É quando me sinto mais eu. Distante de tudo e perto de mim.

- Vamos? Preciso ainda comprar almoço para a minha irmã.

- Ela tem algum problema? Tipo… Você vai comprar o almoço dela…

- Ah! Não, não. A Al é normal. Bem, retiro o que eu disse. Normal?Minha irmã?Bem… Ela é saudável. Ela pode comprar ou fazer o seu próprio almoço, porém, hoje que vai cozinhar é a namorada dela e minha irmã acha horrível o que a menina cozinha. Sabe… alimentos saudáveis…

Ao falar com tom de brincadeira de sua irmã, Alicia abre um sorriso encantador, que deixa Catherine ainda mais fascinada.

- Rá! Sua irmã é igual a mim.

- Então a gente compra almoço para vocês duas.

- Não se preocupa comigo não.

- Você já almoçou?

- Não. Mas já café.

- Então… está na hora de almoçar.

- Não se preocupe…

- Não é preocupação.

- O que é então?

- Uma afirmação. Você vai almoçar conosco. Vamos.

- Vamos.

E elas foram. Passaram em um restaurante, lotado, e compraram churrasco, batata frita, molhos e arroz.  Antes de chegar ao apartamento de Al, ela passou em uma loja onde vende tortas, doces e outras coisas do tipo e comprou uma torta de chocolate. Catherine queria comprar algo para levar. Estava se sentindo mal em deixar a menina que lhe acompanhava pagar tudo. Atravessou a rua, entrou em uma loja de bebidas e comprou um vinho. Um que tinha um preço razoável. Não o mais caro, nem o mais barato. Queria impressionar a mulher ao seu lado, mas não precisava falir.

Dentro do carro elas conversavam pouco. Catherine prestava muita atenção em Alicia, que lhe era simpática. Falaram das músicas que gostavam. Falaram sobre a cidade. O fato de Cat amar o inverno e Alicia preferir a primavera. Alicia disse que quase não bebe. Que não gosta de se sentir bêbada, e que quando bebe, geralmente, é um vinho ou um champanhe. Falaram sobre como é difícil entender cabeça de mulher. Falaram das outras meninas que conheceram no bar. O quanto elas eram jovens. Conversaram sobre as brincadeiras prediletas de quando eram crianças na década de 1980.

Chegaram naquele prédio enorme em Botafogo. Alicia estacionou o carro. Pediu ajuda de Catherine para pegar o que havia comprado. A moça de cabelos escuros pegou tudo, mas a menina de olhos verdes pegou a torta de suas mãos para ajudá-la.

Era sempre uma troca de gentilezas. As duas queriam ser agradáveis e educadas. Cat ficava ansiosa para demonstrar toda a sua educação e esperando, também, o momento exato para dizer o quanto ela era linda.
Entraram no prédio. O porteiro é novo. Não conhecia Alicia. O que fez esperar um pouco para ligar para o apartamento de Al e Veronika para que elas autorizassem as moças de irem ao seu apartamento. Entraram no elevador. Uma olhou bem fundo nos olhos da outra.

- Como seus olhos verdes são lindos. Só agora que reparei. Tão lindos quanto você.

- Bondade sua. Chegamos.

Saíram do elevador. A Catherine abriu a porta para Alicia passar.

A Lili toca a campainha de Al. A irmã que atende e elas se abraçam calorosamente. A saudade estava estampada no rosto das duas. Depois do longo abraço, a anfitriã convida a irmã e a desconhecida convidada para entrar. Alicia abraçou a sua cunhada. Já eram cunhadas a seis anos de idas e vindas. Al e Veronika nunca haviam terminado o relacionamento, mas às vezes decidiam em namorar, com cada uma em sua casa. É um lindo casal. Al branca de cabelos e olhos cor de mel. Veronika uma falsa ruiva morena clara. As duas chamavam muita atenção pela beleza, mas quando saíam juntas pela rua de mãos dadas, chamavam muito mais atenção. É como se juntas ficassem ainda mais belas. Existe muito carinho e ótimos diálogos entre as duas. Adoram conversar.

Alicia mostra que trouxe o almoço.


Alicia: - Olha. Eu trouxe o almoço e esta torta. A Catherine trouxe um vinho para nós.

Vero:    - Não precisava. Eu fiz salada para nós.

Al:       - Precisava sim. Obrigada irmãzinha. Agora não vou passar fome.

Cat:     - Desculpa me intrometer… mas… é… ahm…você só come salada?

Vero:   - Como queijo também?

Al:       - O que ela chama de queijo, de verdade é ricota. E ricota não é queijo.

Alicia: - Deixa de ser fresca, mana. Ricota é uma delicia.

Al:     - Delicia? Você tem noção do que você está falando? É uma massa, sem graça, aguada, sem sal, sem açúcar, que não faz sentido existir.

Vero:   - Que isso, Al? Ricota é bom e saudável.

Al:      - Prefiro uma picanha.

Cat:    - Concordo com você.

Al:       - Viu, até essa garota que ainda não sei o nome concorda comigo.

Alicia: - Ah! Desculpa. Como sou desligada. Essa linda garota é a Catherine.  

Al:       - Hum… Conheceu essa linda garota onde, Lili?

Alicia: - Em um bar, não é Catherine?

Al:       - Se foi em um bar, só pode ser boa companhia.

Cat:     - Obrigada.

Al:      - De nada. E aí, vocês estão ficando?

Cat:    - Ahm?!? – Catherine fala envergonhada e com o rosto vermelho.

Alicia: - Não, Al. Lembra não? Eu estava com a Vanessa. Você a conheceu.

Al:      - Mas o mundo dá voltas. Falando nisso, onde está a Vanessa? Por que ela não veio também?

Alicia: - Ela terminou comigo ontem. Para voltar com o João Pedro. – fala abaixando a cabeça e com olhos tristes.

Vero:  - Não liga não, Lili. Você é linda. Aquela mocréia não merecia você. Ela voltou para um homem? Que nojo.

Alicia: - Nojo mesmo. E ele nem é bonito. Magrelo, alto, cabelo feio.

Cat:     - Que idiota. Só uma idiota para perder uma garota incrível como você.

Alicia: - Obrigada.

Al:      - Se vocês não ficaram aposto tudo que ainda vão ficar. Só não sei se vai rolar só uma transa, um caso ou vão levar a sério o relacionamento.

Alicia: - Que nada. Estamos nos conhecendo ainda.

Vero:   - Vamos almoçar, moças?

Al:      - Vamos fazer assim. Eu e a minha futura, provável, cunhada vamos almoçar o que a Lili trouxe. E é lógico tomaremos o vinho. E vocês comem este mato sem graça e tomem água. Lili, tem um monte de água para você na geladeira. Tem até água tônica.

Alicia: - Valeu Al.

Al:       - Agradeça a Vero, foi ela que foi na rua comprar essa água pra você.

Alicia: - Obrigada cunhadinha.

Vero:   - De nada, Lili.


        Elas sentam-se à mesa para almoçar. Uma boa comida, uma boa bebida, ótimos diálogos e perfeitas acompanhantes.

***
Bruna

        O estresse tomava conta de Bruna, que estava ali sozinha com seus pensamentos inconformados. Ela tremia de raiva. Queria chorar, mas o calor da ira fazia as lágrimas secarem antes de chegar ao queixo. O ódio tomava-lhe o corpo. Os olhos que ardiam. As mãos se apertavam forte. As pernas tremiam e sua garganta estava seca. A sua vontade era de sumir. E às vezes só queria ficar e gritar. Parecia que sua vida havia se transformado. Dos céus ao inferno. Queria entender o que para ela era uma injustiça. Às vezes levantava naquela sala vazia e andava para um lado e para o outro. Estava inquieta.

        Não bastava o que tinha visto ontem e agora a atitude ainda mais doentia de Ligia a afetara como uma flecha envenenada no seu coração. Sentia-se internamente torturada por todos aqueles pensamentos e sentimentos. Uma dor tão grande que nunca imaginara sentir. A dor da perca. Lógico que existia a raiva, o rancor, a tristeza… mas ela perdeu duas pessoas importantes em sua vida. E a dor da perca é uma das piores que você pode sentir. Não tem como mudar aquela sensação. A saudade é intensa, mas você não pode matar esta que tenta te matar. É algo que te engole por dentro e faz perder a razão. Que tira as suas forças e sua vontade. A dor da perca, independente de como esta ocorra, com certeza é a pior dor possível de sentir. Talvez até pior que a própria morte.

        Não sabia o que fazer. Nem como lidar com os sentimentos e afastar as duas de sua vida. Estava tão desnorteada que nem notou que até agora estava apenas de roupão. Era capaz até sair de casa vestida apenas com aquilo, sem notar se sentia frio ou se era olhada pelas pessoas em sua volta.

        Resolveu ir tomar um banho. Queria tirar aquela sensação de quase estupro de seu corpo. Aquele cheiro de perfume e suor alheio. As marcas invisíveis do corpo de Ligia que ainda estavam em sua nudez.

        Embaixo daquela água pensara em tudo. Inclusive se aquela traição seria a primeira. E se ela estivesse sendo traída há mais tempo? As duas podiam estar tendo um caso a mais tempo e só agora ela descobriu, pois se descuidaram. E se Ligia tiver razão em certo ponto. E se realmente Cássia estava de gracinhas e risinhos com outras meninas. E se Ligia não foi a primeira mulher usada para trair Bruna, por Cássia?

        Tantas questões que lhe surgiam na mesma intensidade que a água batia em seu corpo. Fechou a torneira e saiu do banheiro. Secou o corpo e vestiu com um pequeno short jeans e uma regata branca. De cabelos secos, pois resolveu não molhá-los, ela colocou um boné e um chinelo Havaianas. Resolveu sair para descansar a cabeça. Ou pelo menos pensar longe dali. Quando ia colocar a mão na maçaneta o seu celular toca. Esqueceu no quarto. Foi lá, buscou e atendeu. A pessoa que estava ligando tinha colocado o telefone para ligar no oculto, assim não poderia saber quem era. Era Cássia. A sua voz, para os ouvidos de Bruna eram inconfundíveis. Cássia implorou que Bruna falasse com ela. Não durou nem ao menos dez segundos a ligação. Bruna desligou o celular, e o aparelho por seguinte.

        Estava preste a sair novamente, quando abre a porta Cássia estava ali. São vizinhas de porta, era fácil fazer isso. Bruna deu um pequeno empurrão para passar e chamar o elevador. Preferiu ignorar aquela presença, como as pessoas ignoram as crianças de rua passando fome. Mas era por necessidade. Aquela presença lhe faz mal. Sentir aquele perfume era uma tortura para seu ego e, principalmente, seu coração. Ligia traiu uma amizade, mas Cássia traiu um amor de cinco anos. Muitos casamentos não duram tudo isso. E mais que um namoro, existia uma amizade que vinha de infância. Estavam juntas a mais tempo que pensara em dar os primeiros beijos, ou até mesmo largar as bonecas. A dor pela perca de Cássia e pela a sua infidelidade e ingratidão doía até o útero.

        Cássia falava. Bruna ficava calada. Cássia gritava. Bruna ficava calada. Até que chegou o elevador e as duas entraram. Sem a vontade de Bruna, é lógico. Cássia pediu desculpas. Era tarde demais. Um erro daqueles é difícil perdoar. Cássia começou a chorar. Bruna resolveu dizer.

        - Não adianta chorar. Você me machucou mais. Eu te amava. De verdade e agora não consigo te olhar. Você transformou a fantasia em dor. A melodia em silêncio. O que dói mais foi ter perdido as minhas melhores amigas. Mas agora não tem como mudar. Só dizer adeus. Adeus…

        - Aonde você vai?

        - Vou por aí. E não quero que vá. Preciso ficar sozinha. Quero ficar sozinha.

        - Vamos conversar.

        - Já falamos tudo que era preciso. Deixa-me ir embora.

        - Vou dar um tempo para você pensar. Mas depois, me deixa falar com você.

        - Vamos ver. Se o tempo deixar.

        - Nunca esqueça do nosso amor.

        - Eu nunca esqueci, foi você que esqueceu nos braços de Ligia, e sabe mais de quem.

        - Foi um erro.

        - Sim. E o erro foi todo meu em confiar em vocês.

        - É assim?

        - É.

        - Não tem mais volta?

        - Não.

        - E o que eu faço sem você?

        - Existem muitas garotas por aí para você se satisfazer.

        - Eu não quero outra.

        - Quer sim.

        - Foi um erro. Perdoa-me.

        - Um dia, quem sabe.

        O elevador chegou ao térreo. Bruna saiu e Cássia ficou.

        Bruna resolveu andar. Para aproveitar a vista de cartão postal do bairro onde mora, decidiu pegar o caminho da praia. Era só atravessar duas ruas. E ela foi caminhando, com um jeito que não era mais triste e sim revoltado. Tinha que admitir, lógico, que aquele encontro com Cássia estava mexendo com ela. Mais do que queria. Mas o que fazer? Não se esquece de um grande amor apertando um botão na cabeça e acabou. Apesar da raiva, ela sabia que ela ainda amava Cássia.

        Caminhava sem saber aonde ir, como na noite anterior, mas o caminho era diferente. Uma direção diferente. Às vezes é necessário pegar outros caminhos para poder esquecer um amor ou viver outros.

        Ela continua a caminhar perto da praia…

***
Monise

        Estava sozinha em seu quarto trancado. Pegou um de seus canivetes. Cortou um pouco o seu tornozelo direito. Precisava se machucar para não lembrar de outras tristezas. Queria beber, fumar, fazer qualquer coisa contra o seu corpo. Resolveu se jogar novamente na cama. Ela sangrava nas pernas brancas e marcadas pelas inúmeras vezes que se cortara. Quando seus pais tentam tirar dela os canivetes e as demais armas brancas, ela tentava se matar. E cada vez parecia que ia conseguir. Toda vez era um desespero de levar a menina para o hospital. Eram pessoas ocupadas, queriam viver suas vidas e ter suas carreiras, mas a filha parecia atrapalhar. E sempre lhe mandavam para psicólogos e psiquiatras. Já pensaram em interná-la, mas tiveram medo que ela reagisse ainda mais agressiva.

        Era difícil para seus genitores, mas era difícil para ela. Sofria ao ver que eles sofriam. Toda vez que parava no hospital por alguma tentativa frustrada de suicídio, ela falava que não tentaria mais. Mas tentava. Estava há exatos dois meses e sete dias sem tentar. A última vez tentou cortar o pescoço. Tinha uma marca. Conseguiu ser salva a tempo. Mas doeu tanto que ela resolveu pensar bem antes de tentar morrer novamente. Ela queria dar um fim à tortura que sentia em viver. Talvez a morte tivesse um gosto melhor do que da vida. Talvez…

        Seus pais bateram na porta. Ela ficou calada. Bateram de novo e tentaram abrir. Ela havia trancado a porta. Até que começaram a chamar por ela. Monise resolveu responder.

        - Que foi, mãe? Eu ainda estou viva.

        - Não é isso, filha. A gente vai sair. Ir ao restaurante. Vem junto com a gente.

        - Eu não quero sair do quarto.

        - Não é agora. Ainda está cedo, mas é para você ir tomando banho, se arrumar, nos ajudar a escolher o restaurante.

        - Eu não quero ir agora, nem depois, nem hora nenhuma.

        - Filha, vem sim. A gente compra alguma coisa para você.

        - Eu não quero que me comprem nada.

        - Nem uma espada nova?

        - Espada nova?

        - É. Eu achei uma linda em uma loja no shopping. Quer ver?

        - Vou pensar.

        - Não pensa. Vem e faz. Já pensou em entrar em uma aula de esgrima e aprender a usar outras espadas.

        - Eu tenho mais espada ninja.

        - Compraremos uma espada de esgrima. Você vai adorar esse esporte. Imagina dar uma espadada em alguém. Você vai gostar. Eu tenho certeza.

        A idéia de comprar uma espada nova e acertar em pessoas agradou um pouco Monise. De verdade ia gostar mais se pudesse matar, mas brincar de mosqueteira já parecia interessante. Limpou a ferida e saiu do quarto. Os dois sorriram. Gostavam de ver quando a filha ficava empolgada por algo. E a idéia do esporte veio de seu pai e não de nenhum psicólogo. Por que não colocar a menina problemática em um esporte onde ela mexa com o que ela gosta, armas brancas? Ela teria contato com outras pessoas e ocuparia a sua cabeça. Resolveu tomar um banho, se vestir e ajudar os pais a escolherem um restaurante. E depois iria ver onde poderia aprender esgrima.

        Entrou na internet e olhou escolas que ensinam esgrima e fotos de espadas. Adorou. Quase foi a loucura. Mais tarde seus pais a chamaram. Foram almoçar.

***
Luciana

        Ficar parada nunca foi o forte de Luciana. Parada pensando se deve ou não fazer algo, muito menos. Parada, pensando na vida dos outros e cumprindo castigo, muito menos. Tendo em vista os alguns minutos que ela ficou parada, pensou com ela mesma o absurdo. Se a menina que ela conhecera tem problema, não é ficando parada que vai se resolver. E ela está de castigo, quer momento melhor para sair de casa? E foi que ela decidiu.

        Colocou um short preto, e até mesmo curto, que ficava colado no corpo dela, e um top branco, que fazia contraste com a sua pele dourada de sol. Nascera branca, mas o sol da praia a impediu que permanecesse daquele jeito. Cabelos negros e longos que chegam até a metade das costas. Parte liso e parte levemente ondulado. Calçou um tênis confortável naquele pé número trinta e nove. Ela era alta, com corpo sarado pelos exercícios que pratica desde muito nova. Ela sai para correr no calçadão da praia. Não queria entrar no mar, apenas correr. É necessário que mantenha a forma. Ela é uma atleta responsável. E em breve começaria o campeonato entre os colégios da cidade. Queria vencer e levar mais um troféu para a escola onde estuda e sentir aquela sensação de ser queria por aonde ela vai.

        Saiu de casa sem fazer barulho. Já estava tarde, quase dez da manhã daquele lindo sábado de inverno do dia dois de agosto. Morava em um lugar lindo, em frente a praia e seus pais ainda estavam dormindo. Estranho para a cabeça de Luciana, mas perfeito para seu plano. Sai para correr. Não é um grande e perigoso plano, mas estava de castigo.

        Entrou no elevador. Apertou o botão e desceu. Ao chegar à portaria fala para o porteiro, que para os pais dela ela não passou por aí. O porteiro é amigo dela. Aliás, quem não consegue pegar amizade com esta menina? Sempre foi alegre, simpática, divertida e falante. Muito falante. Chegava a um lugar e já conversava com todos. E se não tivesse ninguém, era capaz de conversar com as árvores ou animais. Não por não existir pessoas, ou por adorar falar, mas ela também amava a natureza. Falar com cachorros na rua, cumprimentar um gato perdido na esquina, ou um mico que está perto de uma árvore sempre lhe foi normal. Para ela todos estes, assim como os seres humanos, merecem respeito.

        Ela corria sorrindo. Um sorriso que quase não se desmancha de seu rosto. Encontrava com pessoas conhecidas e dava um olá alegre. Amigas e amigos dela falam para ela entrar na d’água. Ela recusa com o sorriso e diz que está ali só para correr. Às vezes correr é ótimo para aliviar algum estresse e ficar melhor consigo mesmo. Ela parava às vezes, fazia uma caminhada. Mas depois continuava a correr. Tinha um grande fôlego. Tão grande quanto seu ânimo de correr debaixo de sol das dez horas da manhã.

        Ela continua com seus passos ligeiros e seus sorrisos longos.

***
Luciana e Bruna

        Enquanto uma caminhava triste, a outra corria feliz. A diferença delas é que Bruna tinha dificuldade de encontrar a felicidade nos detalhes da vida. Luciana fazia de cada instante de sua vida, a sua alegria ser maior. Sabia que muita gente não tinha a vida boa que ela tem. Nem as suas facilidades. Isso dava força para ela ser feliz, mesmo tendo discussões horríveis com seus pais, principalmente com o pai. A mãe dela geralmente apenas concordava com as atitudes do marido. Bruna é mais sensível às atitudes que as pessoas têm com ela. Tenta ser forte. E até é. Outra pessoa em seu lugar, talvez, teria tido atitudes de pessoa mais fraca, como o suicídio ou matar uma das moças. Atitudes extremas, mas que acontecem em muitos lares.

        Uma andava para um lado. A outra corria para o outro. Em calçadas diferentes, mas na mesma praia. Moram no mesmo bairro. E nem sabiam, mas as ruas nem são tão distantes uma da outra.

        Luciana olha para o lado e vê ao longe alguém familiar andando. Parecia sem rumo. Resolve atravessar. E chegando mais perto, percebe que é a menina que conheceu no dia anterior. Não lembrava bem do nome, mas o rosto não ia esquecer. Quando chegou mais perto resolveu puxar assunto.

        - Aê moça. Que mundo pequeno. Olha nós aqui de novo. E por acaso novamente.
       
        - Nossa. Se o mundo é pequeno, eu não sei. Mas esta cidade deve ser minúscula. De novo?

        - Você mora por aqui?

        - Moro. É meio assim. Você anda nessa rua aqui. Segue direto, no terceiro sinal você vira e vira de novo na primeira esquina. Um prédio grande.

        - Nossa. Perto mesmo. Eu moro nessa rua mesmo que estamos, só que mais pro começo. Resolvi correr hoje.

        - Vamos marcar algumas vezes de sair.

        - Lógico.

        - Vamos tomar uma água de coco. Estou meio cansada de tanto correr.

        - Você correu de sua casa até aqui?

        - Sim. Bem, às vezes eu diminuía a velocidade.

        - O que você faz da vida?

        - Sou atleta. E faço o terceiro ano do ensino médio e cursinho pré-vestibular nas horas vagas.

        - Então você estuda nas horas vagas?

        - Pois é. O problema que está ficando difícil ter essas horinhas.

        - Sei… sei… Como você faz?

        - Pratico o esporte mais popular de todas as escolas em todos os tempos: a Cola. E nisso eu também sou campeã.

        Bruna esquece a tristeza e começa a rir. Só a forma que Luciana fala já é engraçada. Ela se comunica exageradamente. Sorrindo. Fala junto com as mãos. Completamente empolgada. Elas decidem sentar em um quiosque para tomar água de coco.

        - Cara, você é muito engraçada. Você se chama Luciana, né?

        - Isso aí. LU-CI-A-NA. Lu para você. Mas nada de Lulu, se não parece nome de gato ou cachorro.

        - Pode deixar. Luluzinha.

        - Pô, amiga, não esculacha. Meus amigos gostam de chamar de Luluzinha quando querem zoar da minha cara.

        (risos) – Você é demais de engraçada.

        - Se eu disser que eu esqueci o seu nome você não me mata?

        - Não mato não. Só chamo de Luluzinha.

        (risos) - Você é foda.

        - Meu nome é Bruna.

        - Nome lindo.

        - Obrigada, o seu também é muito bonito.

        - O que você estava fazendo sozinha?

        - Andando. Estou bolada com umas coisas.

        - Conta pra Lu sabe tudo. Vou resolver seus problemas, ou seu dinheiro de volta.

        (risos) – Nada de mais. Eu quero rir. Se eu pensar nos problemas será pior. É melhor ignorar.

        - É isso aí. Uma boa gargalhada cura tudo. Uma gargalhada acompanhada da Lu aqui, cura até dor de dente.

        (risos) – Você é atleta, né? Mas o que você joga?

        - Tudo. Futebol, vôlei, basquete, surfe, gosto de nadar, jogo peteca, bolinha de gude e até cuspe à distância.

        (risos) – Não dá para não rir com você.

        - Pena que no campeonato não poderei jogar tudo.

        - Por quê?

        - Não dá para chupar cana e assobiar ao mesmo tempo. Vou ter que decidir. E, além disso, não haverá futebol, apenas futsal?

        - Futsal? O que é isso? Eu não jogo nada. Sempre matei educação física.

        - Ahm… como eu posso explicar? É uma espécie de futebol, só que é na quadra e tem menos jogadores. Antes chamavam de futebol de salão.

        - Ah! Já sei o que é. É o futebol que em dia de chuva não molha ninguém? É ótimo. Se alguém tiver de chapinha, não estraga.

        (risos) – Bem por aí mesmo. Depois eu que sou engraçada.

        - Mas é. Você é hilária.

        - O que você faz da vida? Além de chapinha, é lógico.

        (risos) – Faço administração. Estou no primeiro ano.

        - Administração? Eca! Como você gosta disso?

        - Eu sempre gostei de números, mas daí eu vi que eu gosto de empresas, de cuidar das coisas.

        - Números? Como você gosta disso?

        - É questão de confiança. Eu só acredito na matemática. Ela é exata. Dois mais dois sempre será quatro. O resto já é complicado de confiar. Como confiar, por exemplo, no jornalismo e todas as suas letras e palavras? Como ter certeza que aquilo é verdade? Não por falta de ética do jornalista, mas dos entrevistados. Como confiar?

        - Faz sentido, mas eu não acredito nem na matemática. Na minha matemática: dois mais dois pode ser igual à pi. Ou qualquer outra coisa absurda.

        (risos) – Você é demais. Mas se precisar de aulas de matemática, estou aqui. Ok?

        - Ahm… eu prefiro colar. Perto de você a ultima coisa que farei é estudar.

        - O que você faria perto de mim?

        - Dar risadas. (risos)

        - Boba.

        - Obrigada. Mas e aí? Por que você estava sozinha?

        - Vou te contar. Sua curiosa.

        - Sou mesmo. Conta logo.

        - Raiva. Muita raiva.

        - De que, linda?

        - De quem, né? Minha ex-amiga e ex-namorada.

        - Ainda por causa de ontem?

         - Antes fosse. Ai que ódio delas. Elas me procuraram. Separadas. Eu acordei com a Ligia, que é a minha ex-amiga na minha cama. E ela teve coragem de dizer que fez para o meu bem, para testar a Cássia. Para ver se ela era fiel. E não contente com a desculpa esfarrapada, ela ainda tentou me estuprar.

        - Puta que pariu. Desculpa o palavrão, mas essa garota é foda. Eu tinha comido ela na porrada no seu lugar.

        - Me deu vontade. Mas a garota é forte.

        - Me mostra quem é. Eu não sou só grande. Meu um metro e setenta e nove não são à toa. Sou forte. Dou só um soco no nariz dela.

        - Além de uma amiga arranjei uma guarda-costas. Estou feita.

        - Tendo uma amiga como eu, não precisa de mais nada.

        - Cara, e como estarão as outras garotas?

        - Não sei. Mas não consigo parar de pensar na menina dos piercings. Ela é diferente. Eu quase liguei para ela. Faltou pouco.

        - Vamos ligar para ela.

        - Já é. Você está com celular?

        - Deixei em casa.

        - Eu também.

        - E está ficando tarde. Hora do almoço. Vamos almoçar e depois nos encontramos e ligamos para ela.

        - É isso aí. Já é. Aonde nos encontramos?

        - Pode ser aqui.

        - Olha, se eu não aparecer é porque meus pais me seqüestraram e me mandaram para o Iraque.

        - Pode deixar. Eu te ligo.

        - Ok. Deixa-me ir, pois estou com fome.

        - Valeu.
       
        Elas pagam a água de coco, dão dois beijinhos e vão embora.